A neutralidade não faz parte dos diferentes recursos tecnológicos que utilizamos, consumimos e internalizamos. Cada dispositivo, imbuído de seus hardwares e softwares, possui uma carga simbólica, que representa a própria organização e estrutura social em seus modos de produção, distribuição e controle.
A ideia, muitas vezes equivocada, da imparcialidade tecnológica, leva a crer que as tecnologias às quais temos acesso de maneira “gratuita”, como exemplo os serviços da gigante empresa multinacional dos Estados Unidos: Google LLC, pertencente a Alphabet Inc., faz despertar em nós o sentimento de liberdade e autonomia por intermédio da rede digital. Mas na realidade, a razão do lucro capitalista está implicada nessa relação, pela monetização de nossos dados.
Pensar as inferências das tecnologias na sociedade, tem sido pauta de debates e reflexões de alguns teóricos e autores que se debruçam sobre essa temática, quer seja por um viés distópico, no sentido de questionar as falácias implícitas no discurso e no uso das tecnologias, ou por um viés utópico, ao sustentar as potencialidades e benefícios tecnológicos a favor de um conjunto social.
Dentre os distópicos, citemos Morozov (2018), que nos fala que não basta exercitar uma crítica limitada ao plano das tecnologias e informações, mas se faz necessário compreender a engrenagem do sistema político e econômico que rege a nossa sociedade a nível mundial, pois as tecnologias são advindas desse sistema. No segmento dos autores utópicos, podemos mencionar Serres (2017) que sustenta o discurso de que “vivemos um tempo de aceleração, no qual as informações estão disponíveis a um simples toque” e, com isso, os espaços de saberes são revistos e ampliados, sendo as tecnologias elementos de potência para recriar novos cenários on-line e que proporcionem o conhecimento.
Diante das perspectivas descritas pelos autores, o que o momento atual requer é um entendimento crítico para lidar com essas conjunturas, em que o digital adentra cada vez mais a estrutura social, em seus múltiplos espaços de pertencimento, suscitando alterações e mudanças nas diversas lógicas de vivência convivência humana. Para encontrar esse entendimento, é oportuno arriscar que a resposta está nas pessoas e num exercício filosófico que precisa ser realizado, continuamente, como forma de ultrapassar o senso comum do consumo e volatilidade das tecnologias, para uma tomada de consciência, de apropriação dessas tecnologias de maneira discernente e com um olhar realmente crítico.
O exercício filosófico ao qual se faz referência, não é nada mais que a essência da filosofia em si, a busca pela verdade, a investigação essencial do mundo real, que ultrapassa o senso comum e visa conhecer a natureza, a raiz de uma realidade denotada, isto é, a verdade está além do que vemos, mas no interior do que compreendemos. Dessa maneira, a confluência das tecnologias com as ciências humanas é fator decisório para uma percepção acurada da cultura atual. Com essa atitude, é válido expressar que, diante da revolução tecnológica, há de ter uma revolução filosófica em fluxo para o pensar crítico da cultura digital.
Analisando assim, é oportuno tomar por base o que declara o filósofo americano Andrew Feenberg, ao adotarmos uma postura política diante das tecnologias, que precisa ser debatida em uma sociedade, “pois a tecnologia não é nem universal, nem neutra relativamente de valores, mas carregada de valores, tal como outras instituições que enquadram a nossa existência cotidiana.
Para que possamos realizar essas escolhas tecnológicas, o autor propala a necessidade de ultrapassar as posições tradicionais de resignação e utopia das tecnologias, para, com isso, abrir uma via construtiva para o futuro ou o que ele denomina de teoria crítica da tecnologia, em que o universo tecnológico será em larga medida, resultado da atividades pública dos atores, ou ainda, o exercício da cidadania para a gestão social da tecnologia e para a democratização das sociedades tecnológicas (FEENBERG, 2018).
Portanto, a teoria crítica das tecnologias está em consonância com esse modesto ensaio da cultura digital crítica, quer seja pela apreensão de que o conjunto social, a humanidade, pode e deve intervir nessa discussão tecnológica, como também é possível apropriar-se dos debates que ocorrem nesse campo enquanto sujeitos politizados para que tenhamos condições de prover escolhas que possam auxiliar o progresso de nossa comunidade ou esfera pública em geral.
Para que haja uma tomada de consciência das tecnologias, seus usos, impactos e implicações na sociedade, a aposta está na educação como área de base para impulsionar tal mudança filosófica e prover a cultura digital crítica. Pelos espaços educativos, entre escolas e universidades, sujeitos envolvidos, entre professores e estudantes, as tecnologias ganham fôlego para serem debatidas e compreendidas em correlação com o mundo, e aquilo que é tácito se torna explícito e a cultura digital é acrescida de criticidade.
Então, o nascedouro dessa ação reflexiva pode emergir dos bancos escolares, do cotidiano da escola e das universidades, é a educação como propulsora de uma cultura digital crítica.
Para saber +
ARTIGO – Cultura Digital Crítica: alguns pensares sobre educação e tecnologias no contemporâneo